Eu tinha 8 anos.
Era sábado de manhã. O meu pai tinha uma reunião de trabalho com um cliente lá em casa.
Eu estava brincando quando eles me chamaram. Então, o amigo do pai me deu um presente. Até ali, um presente inédito pra mim. Não era brinquedo, nem boneca, tampouco parecia fofo para ser um ursinho.
Abri o pacote numa urgência voraz, estupefata, ansiosa por descobrir que espécie de brinquedo nova era aquela. Eis que era...
Um livro!
Mas não qualquer livro. Não era um livro infantil, das princesas da Disney.

Era um livro de gente grande. Grosso, um legítimo cartapácio. De capa dura, em couro, uma preciosidade desconhecida no auge dos meus 8 aninhos. Olhava pra aquele livro como quem contempla o Espírito Santo - olhos admirados, gestos sagrados, mãozinhas imaculadas a segurar aquela joia.
O livro era de Jorge Amado. A mãe sabia que eu não podia ler tal obra naquela altura. Comprometi-me a cuidá-lo até o dia em que minha idade mudasse e eu ficasse do tamanho grande para ler livro de gente grande. Eu guardei ele num armário da sala com porta de vidro. Seguido, eu tirava ele dali, limpava o pó, limpava ele.
Fiz uma espécie de altar pro meu primeiro livro.
Graças a essa inocência, a Santa Literatura abençoou a minha vida, os meus caminhos, e todas, invariavelmente todas, as minhas escolhas.
Ler é uma alegria.
A alegria de saber. A alegria de saber mais. A alegria de, veja só, saber que eu não sabia. A alegria de saber que ainda há muito por saber.
Os livros são instrumentos de transformação. Ao entrar na primeira página, é impossível sair o mesmo aquando da última. Deveria haver um verbo pra livro. Livro deveria ser elogio. Já imaginou? "Você é tão livro." Ui! ahahah E cheiro de livro? Alguém deveria fazer um frasco dessa essência. Se já fizeram, let me know, me avise! Vou correndo comprar.

Li para lembrar e para esquecer. Já li em partidas e chegadas. Li pra chorar. E pra sorrir. Livro também é remédio. Já li pra me curar. Muito já me utilizei (e uso!) da farmácia literária, a fim de curar a alma, torcer a ignorância do espírito.
Doei livros pra bibliotecas, vendi pra sebos, presenteei amigos e afetos. Ainda assim, coleciono uma (futura) biblioteca de algumas centenas. E tomara que esse número cresça. Depois de ler e saber tudo isso, trago uma certeza comigo:
Feito Sócrates, só sei que nada sei.
Mas, no entanto, já aprendi o bastante pra desconfiar de muita coisa. Seguido me arrisco a dar pitacos e palpites desta tal camaleoa que é a nossa realidade.
Sem os livros, minha escrita não existiria, a oratória tampouco, a cosmovisão seria estreita, provavelmente a compaixão e a pluralidade nulas, o imaginário equivalente a uma ervilha. Sem os livros, nem eu seria eu. Muito menos um "eu" que sabe ser dona de si, cheia de si. Seria outra, uma estrangeira de mim, uma estranha no espelho.
Sou quem sou e faço o que faço por causa de um certo cartapácio da infância.
Um único livro.
Jamais subestime o poder que há nas palavras, a força de espírito viva que vibra através de cada página sorvida. Da Santa Literatura serei devota para sempre.
A vida que é vivida é bem mais linda junto à vida que é escrita em cada livro.
Até sempre,
Susan
Founder Zeitgeist iD | A sua marca no espírito da época.
Creator Artesania da Palavra | O meu blog no espírito da época.
Susan Duarte©Copyright 2023.
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